Os sentidos dos vivos e dos deuses
O clássico da Antropologia das
Religiões, O Ramo de Ouro, de James
Frazer remete-se profusamente à relação intrínseca entre o humano e o mundo da
natureza. Assim, como Frazer, também Guinzburg em seu estudo sobre os benandanti, observou o mundo de metáforas
e imagens poéticas fundamentais para ilustrar este universo fantástico dos
ciclos sazonais. Estes ritos agrários/fúnebres não eram meramente repetidos mecanicamente,
toda uma encenação e construção imagética e estética era imprescindível ao bom
andamento mágico e devia ser recriada a cada novo evento. Há toda uma
estética que remete ao movimento próprio à natureza, que mesmo repetindo é
sempre inédita. Começa assim Frazer no capítulo dedicado ao mito do Rei Imolado,
Adônis:
“ O espetáculo das grandes mudanças por que passa anualmente a face da
terra impressionou profundamente a mente dos homens, em todos os tempos, e os
levou a meditar sobre as causas de tão vastas e maravilhosas transformações.
Sua curiosidade não era totalmente desinteressada, pois nem mesmo o selvagem pode deixar de perceber quão íntima é a
relação de sua própria vida com a vida da natureza, e como os mesmos processos
que congelam o regato e despem a terra da vegetação ameaçam-no de extinção. Num
certo estágio de seu desenvolvimento, os homens parecem ter imaginado que
estavam em suas mãos os meios de evitar a calamidade potencial e que podiam
apressar ou retardar a marcha das estações pela arte da magia. Assim sendo,
realizaram cerimônias e recitaram fórmulas mágicas para fazer a chuva cair, o
sol brilhar, os animais se multiplicarem e os frutos da terra crescerem”
(p. 122)
Que fórmulas mágicas eram essas
senão poesia? A poesia é a linguagem dos magos, dos filhos da Musa, como afirma
Robert Graves em A Deusa Branca. E as
cerimônias são a encenação das sensações, das sinestesias advindas da vida na
natureza. A mimeses, o ato de imitar
como forma de comunicação mágica, justifica a máscara ritual, os chifres.
Justifica a imolação do Rei para regar os campos com seu sangue, assim como no
mito de Adônis, de Osisris ou de Átis. O Rei é mimeticamente a semente do
carvalho, que cai na terra, apodrece, morre, dela renascendo.
Filme O Homem de Palha. |
A poética das encenações rituais
pagãs aparece nos hinos e cantos, como no do deus babilônico Tamuz, comparado
às plantas que murcham rapidamente (FRAZER, p. 123):
“A tamarga
que, no pomar, água não bebeu,
cuja copa nos
campos não deitou flores,
o salgueiro
que, à margem do regato, não se regozija
e cujas
raízes foram arrancadas,
a erva que no
jardim água não bebeu”.
A morte de Tamuz parece ter sido chorada anualmente ao som de flautas
no solstício de verão. Parece que as “nênias” eram cantadas junto a uma efígie
do deus morto, lavada com água pura, ungida com óleo e vestida de vermelho.
Segundo Frazer, incenso era queimado como para estimular os sentidos
adormecidos do deus com seu odor pungente e despertá-lo do sono da morte.
Continua...
Referências desta parte
FRAZER, James George. O ramo de
ouro. Edição de Mary Douglas.
Resumo e ilustração de Sabine MacCormack. São Paulo: Círculo do Livro, 1982.
GINZBURG, Carlo. Os andarilhos do bem: feitiçarias
e cultos agrários nos séculos XVI e XVII.
Trad. Jônas Batista Neto. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
GRAVES, Robert. A Deusa Branca: uma gramática histórica do mito poético. Trad.:
Bento de Lima. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.
Sugestão de leitura:
Portugueses celebram rituais pagãos no Alentejo
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Portugueses celebram rituais pagãos no Alentejo
Oi Lu. Estava lendo seu post e a sugestão de leitura, quando lembrei que não apenas no Alentejo, mas também no norte de Portugal há evidências de práticas rituais ancestrais pré-românicas. O norte de Portugal e toda a região da Galícia, antes da invasão romana, foram habitadoz pelos povos celtas e lá há muito indícios dessa presença. Eu estive num local muito mágico, ruinas de um povoado celta chamado Citania de Briteiros, em Guimarães. Em Santiago de Compostela também, parece que era um local mágico de práticas rituais já muito conhecido antes dos católicos se apropriarem do espaço e implantarem as suas tradições cristãs. Comprei lá uma bruxa. As bruxas são adoradas lá. Você iria adorar!
ResponderExcluirOi Aninha! Sim, sou louca para ir a Portugal e especialmente à Galícia, e vou! São os planos para o Pós-Doutorado! Agradecida pelo comentário, breve posto a última parte do artigo. Beijos
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